Goodgame Empire

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Browser Game of the year 2013

sábado, julho 14

Reminiscentia

Há certas horas em que devia ser proibido conduzir. O relógio parece concordar comigo, realmente às 3:59 da madrugada é um abuso das nossas capacidades enquanto seres geralmente diurnos. Mal vejo o raio da estrada! Não sei quem é que decidiu que o maior pedaço de todas as estradas deveria ter uma cor escura e que as linhas é que deviam ser brancas. Seja quem for, não parece ter pensado na condução nocturna... Deveria ser exactamente o oposto! As linhas teriam a cor do alcatrão e a estrada em si a cor das linhas, para não adormecermos com tanta escuridão.

São agora 4 horas. Cada vez vejo pior a estrada, este espesso nevoeiro parece ter surgido do nada. Confesso que estou perdido. Não vejo carros, luzes de carros, postes de iluminação, nada! A minha visão está reduzida ao habitáculo do carro e três palmos quadrados da posição onde me encontro. Relâmpagos súbitos e pontuais iluminam o interior do meu carro por breves milisegundos, assim como cinco palmos de estrada. Num desses milisegundos, os meus olhos tropeçaram sobre a minha pasta, que silenciosamente jazia no lugar do passageiro do meu carro. Consegui vislumbrar uma etiqueta branca presa à pasta. Letras que procurava decifrar, durante os relâmpagos, preenchiam-na: Xavier...Alves, Inspector... da... Polícia Judiciária.

Acordo sobressaltado por um barulho agudo subitamente. Procuro apagá-lo de imediato, como quem desliga um alarme que nos acorda de manhã para mais um dia de trabalho. Mas a minha visão táctil não parece ser a melhor, porque já toquei em todo o tipo de botões menos o do maldito despertador. De repente, sinto com as pontas dos dedos, algo semelhante a uma alavanca, justo do meu lado direito. Sinto também uma textura de borracha à minha frente, com um formato circular ou oval. Pressiono o objecto oval que imediatamente emite um barulho sobressaltante. Arregalei os meus olhos subitamente com o barulho. Algo está errado. A minha visão está distoricida, enevoada, mas continua a melhorar lentamente, apenas para me deparar com um cenário aterrador. Ainda estou dentro do carro! O barulho ensurdecedor continua e agora percebo o que é. As luzes do carro continuam acesas e uma das portas do carro está aberta, é o sistema de segurança do carro, para lembrar ao condutor de desligar as luzes do carro, para o mesmo não ficar sem bateria. Não percebo, o que se passa! Porque estou eu ainda dentro do carro? O que é que aconteceu?

Quando saí fora do carro, aparcebi-me do que tinha acontecido. É provável que me tenha despistado, ou talvez adormecido ao volante e embati de lado contra uma árvore num campo, a poucos metros da estrada onde seguia. O carro está bastante danificado, a porta traseira de passageiros está caída no chão e o tejadilho também tem algumas mossas, o que poderá ser um indício de que tenha capotado antes de embater na árvore. Que desastre... Bem, ao menos o sistema eléctrico, assim como a bateria do carro parecem ter sobrevivido, as luzes continuam acesas e o pára-brisas do carro continua a limpar o nevoeiro que persiste.

Não deve ter passado muito tempo desde o despiste, ainda é noite e recordo-me vagamente de ver 4 horas no relógio do carro antes de ter apagado por completo. Tenho de confirmar isso. Assim que dou um passo em direcção ao carro novamente, sinto de súbito, um fraquejo nas pernas, como quem perde as forças. Acabo por ficar tonto, os meus joelhos cedem e obrigam-me a sentar no chão. Ao mesmo tempo uma sinto uma fisgada dolorosa na parte de trás da minha cabeça. Passo a mão pela minha careca e sinto um corte profundo no osso occipital do meu crânio. Uma textura líquida preenche as minhas mãos enquanto identifico a gravidade da ferida. Penso ter perdido algum sangue, daí a fraqueza, tenho que pelo menos tentar estancar o sangue, com um penso rápido e improvisado do kit de primeiros-socorros que tenho no porta-luvas do carro.

Ao esgueirar-me para dentro do carro, para buscar o kit fixo os meus olhos no relógio do carro: 4:00 horas indicava. Os dois pontos entre as horas e os minutos pareciam ter parado, justamente no momento em que desmaiei ou adormeci, no momento do acidente. Enquanto preparava o penso para colocar na ferida, algo aconteceu na minha mente. Senti como se algo tivesse explodido na minha cabeça, vi um flash luminoso que rapidamente se apagou. Algo como uma lâmpada a fundir. Olho para o espelho do retrovisor e não me reconheço... Sei que me chamo Xavier Alves e que sou um Inspector da Polícia Judiciária, mas não em lembro de o ter sido, não me lembro do me chamar assim, não me lembro de ter vida, não me lembro de nada! Tudo o que me resta são sentimentos, já que as minhas memórias me foram roubadas... a minha cabeça é um enorme vazio. E agora? Que faço eu agora? Como é que uma pessoa que não sabe nada sobre nada do seu passado, sabe o que vai fazer agora? Tudo o que sei é que não me lembro de nada das 3:59 horas para trás, que me chamo Xavier e que sou um Inspector da P.J. Para onde vou agora? Onde estou? O que é que eu faço? Estou a desesperar, sou um vazio reduzido a nada. Isto é como um pesadelo do qual não consigo acordar... estarei morto? Não posso estar morto... eu sinto dor, estou a sangrar da ferida na cabeça e sinto-me fraco... Sobrevivi a um acidente que me deixou amnésico. Será isso? E agora? Permaneço aqui até chega alguém que me possa ajudar? Olhando através da janela do meu carro, não consigo ver ou ouvir ninguém. Tudo o que consigo ver é um gigantesco manto de um cinzento nevoeiro que me cerca.

Esperei durante o que pareceram horas dentro do carro, encolhido e abraçado a mim mesmo para me proteger do frio que se fazia sentir. De repente, ocorreu-me que... já que era um Inspector da P.J., deveria conseguir decifrar esta “cena do crime” e encontrar o meu caminho. Embora, teoricamente isto pareça impossível, já que eu não me lembro de ter sido algum dia ter sido um Inspector... É quase um paradoxo. Estou perante o que parece ser um crime sem solução. Curioso é que eu sou o inspector encargado, assim como a vítima e, conseguintemente tenho que avaliar a minha situação, o que pode ser algo muito falível... já que, geralmente, uma pessoa nunca é o melhor juíz de si próprio.

A noite prossegue no local onde me encontro. Olhando através do pára-brisas e além dos ramos da árvore onde embati, consigo finalmente ver a lua, embora ainda ligeiramente escondida pela neblina. Corvos voam à volta do carro de tempos em tempos, como se estivessem à espera de algo. Malditos abutres... bem podem voar aqui à vontade toda a noite. Ainda não vai ser desta que morro, não esta noite. Tenho que sobreviver esta noite, para que assim que nascer o sol poder iniciar a minha busca, de mim próprio. Estes corvos vão ter que esperar um pouco mais até à sua próxima refeição.

Acordo de modo progressivo com uma dor de cabeça aguda. Abro os olhos. Noto que a noite já era, mas que o tempo cinzento se mantém devido à neblina espessa. Sinto-me melhor, recuperado penso eu. Embora tenha dormido numa posição semi-fetal que me afectou o pescoço. Sinto-me confiante agora, o pior já passou. Está na altura de iniciar a minha búsqueda, de mim próprio. Hmmm... O que é que eu faria, se me tivesse despistado, desmaiado durante o acidente, acordado amnésico, sem saber de onde vim, nem para onde ia e sem saber quem sou? Vista a questão desta maneira, resta-me o suicídio, mas tenho que manter a comportura e pensar...

Lembrei-me de algo muito óbvio. Virei a chave da ignição, apenas um click para a direita, olhei para o manómetro, procurando o ponteiro da gasolina... três quartos de gasolina! Mesmo assim o carro não pega. No entanto, encontrei a minha primeira pista. Ora, das duas uma, com esta sucata que deve gastar pelo menos dez a quinze litros aos cem, ou devo estar perto de algum lugar que me é familiar, como o local de trabalho ou a casa, ou então estou perto de alguma bomba de gasolina, ou os três juntos. Com estas premissas um tanto quanto falíveis mas plausíveis, em mente, sou levado à próxima questão lógica: Será que vinha na faixa da direita em direcção a, não sei onde, ou da esquerda na direcção contrária? Pelas setas no chão, percebe-se que esta estrada tem dois sentidos de marcha. Portanto, de que lado vim? Para onde ia? Eis a questão. Olhando para o chão, composto de relva daninha e folhas molhadas pelo orvalho matinal, tudo indica que capotei o carro, de facto. Há partes da relva que estão virgens, intocadas. O carro deve ter dado várias voltas sobre si mesmo no ar, até ser travado pela árvore. Bem, para além de descubrir a espectacularidade do acidente, isto não me ajuda muito, mas as marcas dos pneus no alcatrão não me deixam dúvidas. Vinha na faixa da direita, para quem olha de frente para a estrada, com o carro despistado atrás. E é nessa direcção que vou!

No entanto, falta-me retirar tudo o que possa ser útil ou importante do carro antes de partir. A minha pasta, que tem um sistema de segurança com código que eu desconheço, ou melhor, não me lembro, o que me indica que algo de importante pode estar dentro dela e, claro, o meu casaco de couro forrado para não morrer de frio, na minha caminhada pela estrada da memória. Deito um último olhar para o carro. Olho para o horizonte que me espera. E começo a caminhar em direcção ao meu destino.

O caminho é longo e árduo, muito pior do que imaginava. Cada vez se torna mais difícil aspirar o gás invisível que preenche o espaço vazio à minha volta, e cada vez mais preciso dele. Sinto-me cansado de tanto andar. Consigo literalmente ver o vapor que sai dos meus poros transpirantes. A sede começa a apertar, mesmo com tanta humidade no ar. Maldita ironia. Vou morrer de sede depois de sofrer isto tudo? Nem pensar! Tenho que encontrar algo rápido, tenho que encontrar, tenho que encontrar.

Começo a sentir-me desorientado e cansado. Estou desidratado. Já nem consigo andar, apenas rastejar. Vou morrer...
Não! Vejo algo no horizonte! Um oasis! Consigo avistar uma bomba de gasolina, estou salvo! Uma lufada de ar fresco volta a ligar os meus motores, levanto-me do chão e corro em direcção à minha salvação.

Depois do que pareceu mais uma meia maratona, cheguei finalmente à bomba. Agora o meu instinto de sobrevivência fala mais alto do que toda a razão, tenho que hidratar-me, mas não tenho dinheiro para comprar àgua e esta bomba de gasolina não parece ter casas-de-banho. Atiro-me para o chão e começo a sugar o tubo de borracha, que fornece àgua para limpar os carros, como uma criança com um biberão. Senti, a cada golafda que dava, as minhas forças a voltarem, a preencher o meu organismo ressequido. Paro de beber. Fico deitado a ouvir apenas o barulho da água que continuava a verter. Era música para os meus ouvidos.

Sem poder apreciar o momento, algo quebra a minha concentração, de repente, enquanto olho para o céu, estendido no chão. Olho para a direita e vejo um homem de fato e gravata negros a correr como um louco na minha direcção. Ordeno o meu corpo a levantar-se, mas ele não responde tempo. O homem dá-me um pontapé violento no peito. Vomito metade da água que bebi e sinto simultaneamente uma costela a partir dentro de mim. A dor era profunda e aguda. Consigo finalmente levantar-me e meto um braço à frente do peito, de modo a proteger-me e, o outro braço, esticado de modo a afastar o homem.

- “Pára!! Pára, pelo amor de Deus!!”
- “Páro o quê meu cabrão?! Vou-te matar aqui e agora pá!!”
- “Mas o que é que eu te fiz?! Estás louco caralho?!”
- “Louco? Louco?! Eu vou-te mostrar o louco seu filho da...” Ele descreve o movimento de quem vai tirar algo de dentro do casaco.

Percebo que poderia ser uma arma e atiro-me a ele num último esforço de vida ou morte. Consigo tombá-lo, caindo por cima dele. Ele procura a sua arma no interior do casaco e eu tento tirar-lhe o braço do caminho. Ele não consegue alcançar a arma e num momento de sorte consigo tirar-lha eu. Disparo com a arma apontada no queixo dele em direcção ao cérebro. Ele sucumbe de forma imediata, soltando um semi-grito abafado pelo barulho do disparo. O seu sangue, preenche as minhas mãos e o chão que me rodeia. É curioso como o matei sem hesitar... Não sinto remorsos... Foi legítima defesa, disso não tenho dúvidas! Mas o que é que ele queria?! Porque me atacou sem razão?! Ele agiu quase como se me conhecesse, como se lhe tivesse feito algo terrível. Devia ter agido mais como um inspector da judiciária, devia ter-lhe sacado informações. Agora já é tarde. Ou talvez não... Vasculho o seu casaco, procurando cada bolso, por uma carteira, uma identificação, uma morada, qualquer tipo de informação! Encontrei!! Um cartão... Júlio Raposo... Inspector da Polícia Judiciária... Estou sem palavras... acabo de matar um agente da polícia. Viro o cartão ao contrário à procura de uma morada. Está coberta com sangue. Tento limpá-la com saliva. Rua... Marco...Júnio... Brutus... nº42, Braga... o meu próximo destino.

Corro para dentro da loja da bomba de gasolina, com a arma na mão e pasta na outra. Entre de rompante dentro da loja. Apenas tem o empregado de balcão, que já tem os braços no ar.

“Eu... Eu... Eu já chamei a polícia.”
Aponto-lhe a arma à cabeça e digo:
“Agora vais chamar um táxi, PERCEBESTE?!”
Ele pega no telefone e marca os números à velocidade da luz.

O táxi chega poucos minutos depois. Mesmo a tempo de eu escapar. Mas para quê escapar? Eu agi em legítima defesa... Algo me impele para fugir, mas a consciência pede-me para ficar. Resolvi seguir o instinto em detrimento da razão. Pego no táxi. “Vamos para Braga!” digo.

Chegado a Braga, olho através da janela a cidade, que desconhecia, ou que não me lembrava dela, mas que me transmite um sentimento familiar. Um sentimento, como um déjà vu, como algo que já vi antes... difícil de pôr em palavras. “Leve-me para a rua Marcos Júnio Brutus, nº 42.” Digo eu ao observar a cidade. “Ah! Você quer ir para a sede da P.J.” diz o taxista com requintes de sabedoria. “Ah? Sede da P.J. ...” sussurro. “Sim, leve-me lá, rápido.” O taxista mete o pé no acelerador, como se fosse um corredor de Rally e chega ao dito destino por quelhos e ruas estreitas num tempo récorde. Eu abro a porta do táxi. “Ei! Amigo! E o pagamento?!”. “Espere aqui, que eu já lhe trago o dinheiro.”. “Veja lá se se despacha, que eu tenho outros clientes à espera!” Fecho a porta do carro.

Olho para o edifício imponente à minha frente. A placa dourada colocada no centro da porta não deixa dúvidas: Sede da Polícia Judiciária. Diz em letras capitais. Entro dentro do edifício sem saber bem o que esperar, ao fim ao cabo não fiz nada de mal, apenas procuro saber o que me aconteceu e o por que razão o homem me tentou matar.

Olho à minha volta e vejo poucos polícias a trabalhar, é como se a sede estivesse a meio-gás hoje. No balcão principal apenas se encontra um agente e à sua volta a trabalhar em computadores e impressoras apenas vejo mais dois ou três gatos pingados da judiciária. Todos estão com um ar muito sério e o silêncio que se fazia sentir era digno de um funeral. Até que o agente no balcão berra algo que corta o silêncio: “Pessoal, pessoal, as notícias!” Ele pega no comando e aumenta o volume da televisão, para a qual todos estavam a olhar, incluindo eu.

“...Interrompemos a emissão para dar início a uma notícia de última hora. Um inspector da polícia judiciária, já identificado como Júlio Raposo, foi morto a tiro numa bomba de gasolina a poucos kilómetros de Braga. Segundo os relatos de uma testemunha que assistiu a tudo, o inspector envolveu-se numa briga com outro homem, não identificado, acabando por ser executado indefeso e a sangue-frio, com um tiro na cabeça...”

“...A testemunha já procedeu à identificação via retrato-robô, visto que as câmaras da bomba de gasolina não estavam operacionais. Aqui está a foto, procura-se um homem entre os 30-40 anos de idade, completamente careca, com um golpe profundo na cabeça, de aspecto possante, com aproximadamente 1 metro e 80 centímetros de altura, vestido com um casaco de couro e com uma pasta também de couro. Atenção, o homem está armado e é considerado perigoso, a PSP pensa tratar-se do mesmo assassíno em série de polícias foragido que matou todos os chefes da sede polícia judiciária ontem mesmo, roubando também os cofres da P.J. assim como provas cruciais de investigações a associações criminosas. A PSP afirma também que o assassino, poderá ter ligações a essas mesmas associações criminosas a trabalhar em Portugal, além disso pensam que o foragido fez-se passar por inspector da polícia durante muito tempo, para se poder aproximar dos seus alvos a abater. Portanto, relembramos que se vir alguém com esta descrição, seja discreto e contacte de imediato a polícia judiciária ou a PSP através deste número que pode ver no rodapé...”

O agente desliga a televisão. Olha directamente para mim. Os outros agentes fitam-me como estátuas imóveis. Entro em pânico, quando a minha memória começa a voltar numa torrente, como se uma barragem tivesse cedido e agora litros e litros de memórias penetrassem o meu cérebro que rapidamente se inunda... eu lembro-me agora. Já sei quem sou. Já sei o que fiz... Hmm... Por isso o golpe na cabeça, agora lembro-me. Não foi do acidente de carro, enquanto fugia para um local escondido, foi o maldito do chefe da polícia que ainda me acertou com uma soqueira quando pensava que já estava morto. Pobre inútil, acabou por morrer como um verme a meus pés, sufocado no próprio sangue. Talvez tenha sido por isso que perdi a consciência e capotei o carro contra uma árvore. Talvez por isso a minha memória tenha sido afectada. É curioso como quando acordei me comportei como se fosse uma pessoa normal, uma pessoa... de “bem”, se é que se pode dizer. Muito enganado estava, pelos vistos. Tenho que fugir daqui já!

Viro as costas e começo a correr em direcção à saída da esquadra, mas em vão. Sou baleado nas costas vezes sem conta, sem aviso prévio por parte dos agentes... Quem os pode censurar? Matei os companheiros deles... e com uma certa satisfação devo acrescentar. Agora morro como já esperava morrer algum dia, pela mão das pessoas que fui treinado para matar.

Mas fica no ar um gosto agri-doce de uma morte quase irónica, de uma pessoa de índole boa, mas com uma reminiscência sombria que alterou tudo. Pelos vistos, Sartre tinha razão, quando dizia que cada pessoa só tem como essência imutável, aquilo que já viveu: “a existência precede e governa a essência". Afinal de contas, somos mesmo uma folha branca, à espera de ser escrita. E tudo o que deviamos ser quando nascemos, é alterado pelo que escrevemos nessa mesma folha até ao dia em que morremos.

Às vezes, mais vale esquecer, do que uma reminiscência...


p.s.: Written by Luciano Neves for Creative Writing
Copyright protected - Universidade Católica Portuguesa

Um Manual de Escrita?

I – A Arte da Escrita

Cada um tem o seu método, obviamente. No entanto, qualquer escritor lhe dirá que há coisas essenciais para se poder escrever e, neste caso, escrever bem – pois, na verdade, é isso que buscamos e pretendemos alcançar, nós os escritores evidentemente. Claro que, nem todos conseguiremos atingir o nível soberbo de um Ernest Hemingway ou de um Luís de Camões, e provavelmente nunca atingiremos, pois há escritores que são realmente únicos e mestres na sua própria visão da arte da escrita.

II – Caixa de Ferramentas

É relativamente difícil escrever um manual de escrita para todos os escritores, pois em parte penso que cada um tem que encontrar o seu caminho, o seu método, o seu estilo de escrita. Mas isso não chega infelizmente. Stephen King fala de uma certa caixa de ferramentas que contém todo o nosso conhecimento de escrita: o vocabulário, a gramática e os elementos de estilo. Ora bem, Stephen King, o mestre do terror e do suspense, toma uma posição bastante radical quanto à escrita – para ele – se uma pessoa abrir essa caixa de ferramentas e não encontrar ferramenta certa para o objecto que pretende construir, nunca será um grande construtor. Por outras palavras, para King as três ferramentas base de escrita são o vocabulário, a gramática e os elementos de estilo, logo se um desses faltar, o escritor nunca será bom, ou mesmo competente, será um escritor mau e, adicionalmente, será um escritor mau sempre!
Ora, eu não me chamo Stephen King, nem sou um escritor, nem tenho os mesmo conhecimentos que o Sr. King, mas não deixo de temer que ele tenha razão no que diz... porém, sou optimista e não partilho da mesma opinião no que diz respeito ao escritor que será mau para sempre, caso não tenha uma das ferramentas essenciais. Felizmente o ser humano, tem um cérebro que lhe permite apreender conhecimentos novos, que lhe permite aperfeiçoar-se e racionalizar. Mas posso estar enganado, a minha experiência e contacto com a escrita são rídiculas comparadas com a de um professor catedrático e um escritor conceituado, mas permito-me a audácia de discordar mesmo assim.

III – Escrever ou ler?

O facto é que para se escrever bem, tem que se estudar muito, aprender muito, trabalhar muito, escrever muito e ler muito. Ser uma sanguesuga do conhecimento e da prática, absorvendo tudo de bom e de mau, para se poder e saber quando comparar, melhorar ou descartar. Pessoalmente, perdi bastante o interesse na leitura, perdi também tempo para a leitura, talvez precisasse de “comprar tempo para ler” tal como na curta-metragem, mas isso não é possível, portanto eu tento compensar esta falta com a escrita, que me dá muito mais prazer. A criação de histórias é fenomenal, porque escrevemos sempre algo que gostamos, algo que não vemos nos outros livros que lemos, algo de novo e, no meu caso, sinto-me sempre como o leitor e o escritor quando escrevo uma história, pois adoro histórias de terror, suspense, mistério, fantásticas! Adoro não saber o que vai acontecer na próxima linha ou no parágrafo seguinte, cada personagem que crio é uma parte de mim que age de forma independente e isto torna as coisas muito interessantes para quem lê ou pelo menos para mim.
Porém, há quem diga que não se deve começar a escrever sem se saber onde a história vai parar. Ora, eu reconheço que este é o método mais seguro e que deve ser o caminho a seguir ou pelo menos o caminho que a maioria dos escritores segue. Só que para mim, começar uma história já sabendo o fim ou tendo um objectivo mais ou menos claro, tira-me o prazer da escrita, pois deixo de ser o primeiro leitor da história, passo a saber o que vai acontecer a seguir e isso tira-me o prazer todo.
O que quero dizer com isto é que devemos escrever sempre algo que nos dá prazer, mesmo que esse prazer nos dê muito trabalho, a recompensa é sempre maior que o trabalho.

IV – O Ambiente

Há quem pense que o ambiente tem pouca influência na escrita ou nos escritores, ora essas pessoas estão redondamente enganadas. Um bom ambiente influência em grande parte o fluir das ideias e, por vezes, é o ambiente que nos prende e mantém a escrever, pois ajuda-nos a visualizar tudo o que escrevemos, a entrar no mundo que estamos a criar. Obviamente, cada pessoa tem o seu método de concentração e escreve melhor num tipo de ambientes do que noutros. Há quem goste de ter barulho à sua volta, há quem goste de ter a música aos berros, há quem goste de muita ou pouca luz, portanto, neste caso, cada um tem que encontrar o método que mais lhe satisfaz. Para King, um quarto com a porta fechada num ambiente calmo e a ouvir Hard Rock funciona às mil maravilhas. Para mim, um quarto com um ambiente calmo e músicas que tenham ou provoquem a mesma carga emocional que a história pretende transmitir, concentram-me passado cinco ou dez minutos e, a partir daí, já saí do quarto e já estou noutro lugar, já estou na “Twilight Zone” como se costuma dizer. Bem, nesse momento as palavras fluem mais devagar que o pensamento e as teclas que primo ou as palavras que escrevo parecem ter voz própria. É quase como se estivesse sob o efeito de drogas ou álcool.

V – Descrições

Infelizmente, quando escrevo algo que não me dá muito prazer, tendo a desleixar-me e a escrever mecânicamente. As descrições, para mim são o momento mais difícil da escrita, pois é algo que muitas vezes trava a acção e que exige uma visualização mental profunda. As descrições que faço normalmente faço-as para o leitor, não para mim, pois eu estou a ver, a ouvir, a sentir, a saborear e a cheirar exactamente o que quero na minha cabeça. Mas se o leitor não conseguir sentir o que eu sinto, receio que perderá o interesse. Então procuro agradar o leitor nos momentos descritivos, desde que as descrições sejam relevantes obviamente, pois descrições ínfimas de detalhes que pouco ou nada têm a ver com a história são inúteis e aborrecidas. Em todo o caso, é preciso ter muito cuidado com a escolha de palavras. As repetições, o uso excessivo de advérbios e adjectivos, as palavras complicadas etc., são problemas que podem surgir com muita facilidade em textos muito descritivos e quando isso acontece... bem você já sabe, seleccione tudo, carregue onde diz “Delete” e... tente de novo. Procure fazer descrições activas, isto é, não pare tudo de repente e comece a descrever como um louco cada detalhe do ambiente, em vez disso tente avançar na história descrevendo o que se está a passar ou então faça como Hemingway que pouco descreve, deixando o resto para o leitor preencher, mas cuidado...

VI – A Voz Passiva

Stephen King escreveu algo muito interessante sobre o uso da voz passiva. De facto, a voz passiva parece quase sempre artificial e muito aborrecida de se ler, pois complica toda a frase e frase perde conseguintemente toda a intensidade. E ainda, segundo King, o uso da voz passiva muitas vezes surge por medo de não estar a escrever bem ou indecisão, medo de dizer “Eu matei o João” em vez de “O João foi morto por mim.” É preciso convicção no que se diz e, recorrer constantemente à voz passiva, pode ser a morte do artista e eu concordo plenamente com Stephen King.

VII – Conclusão

Conclusivamente, penso que como escritor aprendiz, nunca me senti tão elucidado, em relação à escrita, como quando li este manual de escrita fabuloso de Stephen King. Nunca tinha lido algo do género e considero que é algo que deve ser lido por qualquer escritor ou qualquer pessoa que tenha interesse em escrever e, neste caso, escrever bem. Parabéns Sr. King.


p.s.: Written by Luciano Neves for Creative Writing
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